A estrutura do crime de espionagem, previsto no art. 359-K do CP, é formada pelo núcleo entregar; pelas elementares objetivas governo estrangeiro e seus agentes; e pelas elementares normativas organização criminosa estrangeira, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, e documento ou informação classificados como secretos ou ultrassecretos nos termos da lei, cuja revelação possa colocar em perigo a preservação da ordem constitucional ou a soberania nacional.
A estrutura, todavia, não se resume aos elementos revelados pela leitura literal, pois também traz a estrutura basilar finalista, composta na sua integralidade pela conduta, resultado, nexo de causalidade e tipicidade.
Entregar significa repassar, fornecer. Governo estrangeiro é aquele exercido em território autônomo e soberano. O tipo, portanto, visa coibir o repasse de informações secretas ou ultrassecretas a governos estrangeiros ou seus agentes, bem como a organizações criminosas estrangeiras.
Nesse particular, há que se indagar qual o conceito de organização criminosa será aplicável, se o previsto no §1º do art. 1º da Lei 12.850/13, ou o fornecido pela Convenção de Palermo[1] (art. 2, “a”), trazido para o Direito pátrio por meio do Decreto 5.015/04. Vejamos as definições:
Convenção de Palermo
"Grupo criminoso organizado"
Grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;
Lei 12.850/13
Art. 1º§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
O Estado brasileiro, ao conferir à organização criminosa conceito distinto, viola a obrigação assumida diante da comunidade internacional, gerando riscos para a cooperação internacional quando for necessário verificar a dupla tipicidade. Nessa linha, a Convenção de Palermo exige apenas três membros para a configuração da organização criminosa, ao passo que a Lei 12.850/13 exige quatro pessoas. De igual forma, a Convenção de Palermo considera infração penal grave o crime cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos de prisão, ao passo que a Lei 12.850/13 concebe como graves apenas os crimes com pena máxima superior a quatro anos de reclusão.
Estabelecida a distinção, calha lembrar que o STF, no julgamento da AP 470 e HC 96.007/SP, afastou o conceito de organização criminosa contido na Convenção de Palermo, tendo, por um dos fundamentos, a inexistência de tipo penal específico. Ocorre que, atualmente, o conceito de organizações criminosas foi trazido para o sistema penal por meio de tipo, existindo dois conceitos vigentes de organizações criminosas, o conferido pela Convenção de Palermo e o preconizado pela Lei 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas).
Estabelecido o problema, cumpre-nos indagar novamente: qual conceito de organização criminosa deve ser levado em consideração no âmbito do art. 359-K do CP?
Entendemos, de forma sistêmica, que deve ser utilizado o conceito da Convenção de Palermo, vez que o sistema penal pátrio não define organizações criminosas estrangeiras e o tipo penal não tipifica a conduta de organização criminosa estrangeira[2]. De fato, o Brasil, ao assumir internacionalmente o compromisso de combate às organizações criminosas, ainda que tenha conferido conceito distinto às referidas no âmbito interno por meio da Lei de Organizações Criminosas, não pode se afastar da definição internacional assumida, de forma voluntária, por meio de Convenção, o conceito internacional, especialmente quando faz expressa menção em um tipo penal às organizações criminosas estrangeiras, não definidas pelo Direito interno.
O saudoso Luiz Flávio Gomes, analisando em parte a questão, antes da entrada em vigor da Lei de Organizações Criminosas, destacou:
a definição de crime organizado contida na Convenção de Palermo é muito ampla, genérica, e viola a garantia da taxatividade (ou de certeza), que é uma das garantias emanadas do princípio da legalidade; 2º) a definição dada, caso seja superada a primeira censura acima exposta, vale para nossas relações com o direito internacional, não com o direito interno; de outro lado, é da essência dessa definição a natureza transnacional do delito (logo, delito interno, ainda que organizado, não se encaixa nessa definição).(...) Sem a singularidade da transnacionalidade não há que se falar em adequação típica, do ponto de vista formal[3];
Logo, temos que a interpretação fornecida não tipifica a conduta de organizações criminosas estrangeira, pois tão somente se vale do conceito legal apto a caracterizar de uma situação jurídica – organização criminosa estrangeira – não definida pela norma penal do art. 359-K do CP, motivo pelo qual a concebemos como norma penal em branco, cujo complemento deve ser extraído do Decreto 5.015/04, vez que voltado, precipuamente, ao combate contra o crime organizado Transnacional, conforme art. 1º do referido Decreto[4].
[1] Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. [2] Afasta-se, portanto, a lógica do fundamento do STF no julgamento do HC 96.007/SP: [3] GOMES, Luiz Flávio. Definição de crime organizado e a Convenção de Palermo. Disponível em: http://www.lfg.com.br, 06 de maio de 2009. Acesso em 04.09.21, as 11h12min. [4] Art. 1o A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000, apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém.
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