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Foto do escritorFernando Abreu

O financiamento do tráfico exige habitualidade?




O delito de financiamento ou custeio do tráfico é concebido, majoritariamente, como crime formal, não exigindo a produção do resultado naturalístico. Não obstante, há três correntes doutrinárias sobre o assunto.

A primeira corrente aduz tratar-se de crime permanente, cuja consumação se prolonga no tempo, de sorte que o financiamento contínuo caracterizaria crime único.

A segunda corrente, por sua vez, sustentada por Rogério Sanches, Renato Marcão, Victor Eduardo Rios Gonçalves e José Paulo Baltazar Jr., entender ser o delito habitual, de forma que para a configuração do crime previsto no art. 36 da Lei 11.343/06, o sustento deve ser reiterado, habitual, rotineiro, haja vista que aquele que financia o tráfico de forma ocasional incorre tão somente na causa de aumento do art. 40, VII, combinado com o art. 33, caput, da Lei de Drogas.

Por sua vez, a terceira corrente, defendida por Renato Brasileiro e Cléber Masson, sufraga a compreensão de que o delito é instantâneo, porquanto os verbos “financiar” e “custear” não pressupõem a permanência, materializando-se de forma instantânea. No entendimento de BRASILEIRO[1] (2016, p. 774), “se o financiador bancar, em dez ocasiões diversas, a aquisição de drogas para comercialização por terceira pessoa, o agente deverá responder dez vezes pelo delito do art. 36 da Lei 11.343/2006, em concurso material ou em continuidade delitiva, conforme o caso”.

Em nossa compreensão, a adequada classificação do delito passa pela análise de dois vetores interpretativos. O primeiro perpassa pela análise sistemática com o parágrafo único do art. 35 da Lei de Drogas, que somente tipifica como associação para o tráfico a reunião estável de duas ou mais pessoas que se juntam para, reiteradamente, praticar o financiamento dos crimes de tráfico, dispositivo que deve ser lido em análise conglobada com art. 40, VII, majorante aplicável no caso do financiamento ou custeio ser ocasional.

Em crítica ao referido entendimento, MASSON[2] (2022, p. 189) destaca que:

Com efeito, a expressão “prática reiterada ou não”, prevista no caput do art. 35 da Lei de Drogas, significa apenas que este delito se configura diante do vínculo estável dos membros associados, ainda que a finalidade do agrupamento seja o cometimento de somente um dos crimes dos arts. 33, caput e § 1º, e 34 da Lei de Drogas. A associação para o financiamento (Lei 11.343/2006, art. 35, parágrafo único), por sua vez, concretiza-se com o objetivo (basta a intenção) de cometer a “prática reiterada” da infração penal definida no art. 36. Portanto, a expressão “prática reiterada” não autoriza a conclusão de que o delito do art. 36 seja de natureza habitual.

O segundo vetor interpretativo, em nossa compreensão, pressupõe, necessariamente, a observância do risco criado no caso concreto para análise da dimensão do financiamento. Inegavelmente, há um suposto conflito normativo entre a previsão do art. 36, que pune o agente que financia ou custeia a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º , e 34 da Lei de Drogas, com uma pena de reclusão de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e a previsão do art. 40, VII, que agrava a pena do agente que financia ou custeia a prática do crime em um sexto a dois terços.

Uma leitura apressada nos conduz à conclusão ofertada pela segunda corrente, de que o traço distintivo entre o art. 36 e o art. 40, inc. VII, reside na habitualidade. O crime habitual é aquele que se caracteriza pela prática reiterada e uniforme de atos reveladores de um estilo criminoso de vida. Portanto, cada ato, em si, não caracteriza crime, mas somente sua reiteração habitual seria capaz de fazer incidir a norma penal, a exemplo dos crimes de manutenção de casa de prostituição (art. 229, CP) e o exercício ilegal da medicina (art. 282, CP).

Em nosso entendimento, o financiamento ou custeio não necessariamente exigem a reiteração comportamental, podendo se materializar em um único ato, a exemplo do agente que disponibiliza um laboratório completo para produção de drogas, uma frota de veículos, ou que aporta, em único ato, volumosos recursos para o custeio contínuo do tráfico. Percebam que habitualidade, nos exemplos citados, inexiste, não obstante nitidamente sinalizarmos a necessidade perpetuação do risco criado.

O financiamento ou custeio não é apto, por si só, a caracterizar a agravante do art. 40, VII, ou o crime do art. 36. É imprescindível que se analise o risco criado e sua projeção para que possamos realizar o adequado enquadramento típico. O agente que empresta cinco mil reais para que um traficante adquira certa quantidade de droga para revender, apesar de criar um risco juridicamente proibido, não incorre, pela reduzida potencialidade, no alcance do tipo previsto no art. 36 da Lei de Drogas, apesar de incorrer na agravante do inciso VII do art. 40. Isso porque, sendo o próprio traficante preso, caso satisfaça os requisitos de ordem subjetiva do §4º do art. 33, possivelmente incorrerá na figura do tráfico privilegiado, de sorte que seria desproporcional se cogitar em uma pena de um ano e oito meses de reclusão para o traficante, executor da conduta, e outra, de oito a vinte anos de reclusão, para aquele que emprestou o dinheiro para a aquisição de drogas.

Ao contrário, o agente que aporta um milhão de reais para aquisição de drogas ou disponibiliza, por exemplo, uma frota de veículos para transporte, cria um risco juridicamente proibido de alta potencialidade lesiva, que se encontra no alcance do tipo penal previsto no art. 36 da Lei de Drogas, vez que seu comportamento não somente cria o risco proibido, mas dá vazão a um risco constante, de alto impacto social.

De forma perceptível, valemo-nos, para a conclusão a seguir, da teoria da imputação objetiva e das teorias do risco. Não obstante a concepção original da teoria da imputação objetiva trilhar a linha de aplicação somente aos crimes materiais, conforme esclarecemos na apresentação da obra, não observamos qualquer óbice à sua aplicação aos crimes sem resultado naturalístico, especialmente por associarmos a teoria a uma compreensão maior de risco.

Em acréscimo, ousamos em nos valer da construção da variante objetiva de Hezberg, utilizada para distinção entre dolo eventual e culpa consciente, a qual, com a devida justiça, aproveitamos analogicamente apenas a compreensão da distinção entre pequenos riscos e grandes riscos.

Conforme destacamos em nosso Direito Penal, Parte Geral, Hezberg confere à qualidade do risco o parâmetro principal para se distinguir a conduta dolosa da culposa. Nesse contexto, a distinção entre conduta dolosa e culposa não se fundaria exclusivamente na representação do risco não permitido, pois seria necessário que o risco fosse provido de determinada qualidade, suficiente para converter a não ocorrência do resultado em feliz casualidade, na palavras de VIANA[3] (2017, p. 231).

Destarte, elegemos o vetor interpretativo qualidade do risco como importante ponto a ser analisado no caso concreto, como forma de se distinguir o financiamento-típico, do financiamento-agravante.

Em linha de conclusão, fixadas as premissas acima, compreendemos que o crime de financiamento ou custeio do tráfico é de risco instantâneo, mas sua conformação típica pressupõe a necessidade de análise da qualidade do risco criado, cujos efeitos devem ser qualificados, seja pela permanência, seja pela alta potencialidade lesiva. Não sendo verificada a potencialidade lesiva no caso concreto, digna a dar vazão típica imediata, a eventual reiteração comportamental, habitualidade, pode nos fornecer parâmetros seguros para também concluir pela prática do delito. Logo, somente o caso concreto será capaz de atestar a natureza instantânea ou habitual do delito.

*Trecho do nosso livro Legislação Penal Especial, ainda em desenvolvimento.



[1] op.cit. [2] op.cit. [3] VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. São Paulo: Marcial Pons, 2017.

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